Gêmeos em V, opostos ou paralelos são a tendência: veja porque e conheça os diversos tipos
Por: Eduardo Viotti
De quantos cilindros você precisa para ser feliz? O mínimo é um, sem limite mínimo nem máximo de cilindrada… Tenho um amigo que sempre diz: “saúde, dinheiro e cilindros, quanto mais, melhor”, kkkk. Nem sempre é verdade, claro! Depende da utilização da motocicleta: fazer trilhas com uma moto de seis cilindros é um completo nonsense, lógico. Para o off road, quanto mais torque e mais estreita a moto, melhor.
Cada configuração de motor tem vantagens e desvantagens: em linhas gerais (e isso sempre teoricamente, pois na prática, o acerto de um motor pode mudar e até inverter essas regras) os motores de menos cilindros têm (proporcionalmente à mesma cilindrada) mais torque em baixas rotações. Os de maior número de cilindros teriam maior potência em altos regimes de giro. O mesmo vale para as vibrações: quanto mais cilindros, mais macio e suave deveria ser o funcionamento; quanto menos cilindros, mais trepidante e áspero. Em relação à facilidade de manutenção e reparos, nem é preciso enunciar que os multicilíndricos têm maior complexidade mecânica e mais peças móveis. Têm, portanto, maior custo de reparação e manutenção.
Neste artigo, vamos abordar os motores de dois cilindros e suas características. Assim deixamos os monocilíndricos e os multicilíndricos para próximas edições.
GÊMEOS DE VOLTA
Os motores de dois cilindros dominavam o panorama da indústria até o finalzinho dos anos 1960, quando surgiu a bombástica Honda CB 750F em 1969, seguida pela Kawasaki Z1, em 1972. Com motores tetracilíndricos, roubaram a cena e transformaram radicalmente o gosto dos pilotos. De passagem, levaram a até então dominante indústria inglesa de motocicletas à bancarrota.
Depois da grande crise econômica mundial de 2008, as montadoras voltaram a oferecer bicilindros de grande capacidade e potência, por serem mais econômicos de produzir que os multicilíndricos –embora nem sempre mais baratos para o consumidor final. Assim, os quatro e seis cilindros se transformaram em iguarias mecânicas, destinados a produtos de luxo ou de performance esportiva. Os seis cilindros são praticamente um privilégio das grandes e luxuosas touring, como a BMW K 1600 GT e a Honda Gold Wing.
Os bicilíndricos também são chamados de twins, gêmeos. Não se espante com a aparente obviedade: houve, no passado remoto, tentativas –aparentemente malogradas– de construir motores com cilindros díspares… Há diferentes arquiteturas para twins: em linha (paralelos); em V (com diferentes ângulos entre eles); em V a 90º com o virabrequim longitudinal; em L (na verdade um V a 90 graus); e opostos (ou V a 180º, chamados boxer ou planos, flat twins). Cada fábrica procura assumir uma destas configurações como sua marca registrada.
Assim, a Harley-Davidson, por exemplo, finca pé na construção de enormes V2 com cilindros a 45 graus entre si, porém com as duas bielas conectadas a um só e mesmo mancal no virabrequim. Essa característica singular é que dá o típico ruído das Harley, super-reconhecível, especialmente na marcha-lenta. Nos conservadores motores refrigerados a ar da marca, depois da explosão ocorrer em um cilindro, o outro explode 315 graus depois. Há um intervalo de 405 graus sem combustão e só então ocorre outra explosão.
A atual geração chama-se Milwaukee Eight, em alusão à terra natal da marca e ao número de válvulas presentes nos dois cabeçotes. Existe uma versão, aplicada nas motos mais caras, com refrigeração líquida nos cabeçotes.
Mas mesmo a conservadora Harley-Davidson e seus aficionados estão mudando, e a nova geração de motores Revolution Max, por enquanto aplicados apenas na nova Sportster S e na supertrail Pan America (com 150 cv) adota outro projeto de engenharia. O novo R-Max, de 1250 cc, é refrigerado a água e tem os cilindros dispostos a 60 graus entre si. Ele é uma evolução do Revolution montado no descontinuado modelo V-Rod, moto que fez bastante sucesso no Brasil há alguns anos, mas nunca foi tratada como uma legítima Harley-Davidson pelos fanáticos cultores da marca norte-americana. Consta que o Revolution tenha sido inicialmente desenvolvido pela Harley em conjunto com a alemã Porsche, especialista em carros esportivos.
Os V2 ou V-Twin já surgiram em uma infinidade de variações, separados por 45º, 60º, 90º, 120º, entre outras possibilidades. As fabricantes japonesas também trouxeram ao Brasil algumas versões de seus V2. Ainda oferecem esse tipo de motor nos EUA, onde é mandatório…
Em um rápido retrospecto entre as mais recentes que rodaram pelo país, lembramos das Honda Shadow 600 e 750, ainda cobiçadas por aqui; as Yamaha Drag Star 650 e Midnight Star 950, esta última com apelo custom moderno.
A Kawasaki trouxe algumas unidades da Vulcan 900 Classic, que substituiu as primogênitas de 750 e 800 cc. Sua versão Custom tinha acabamento em preto e uma pegada mais esportiva/custom. A Suzuki lançou ainda em 1986 a Intruder VS 750 GL, seguida pela Intruder VS 1400 GL, no ano seguinte e posteriormente pela Marauder. Em meados dos anos 2000 a marca lançou a Boulevard, em linha até hoje com o motor de 1500 e depois 1800 cc. A marca também mantém no Brasil a família V-Strom 650 e 1000 com motores em V. A naked SV 650 também passou por aqui.
A indo-austríaca KTM também produz superpoderosos motores em V a 75 graus. Atualmente os modelos equipados com os fantásticos LC8 de 1290 cc não estão à venda no Brasil, mas já deixaram sua marca nas ruas e estradas tupiniquins, tanto em modelos street, como as Super Duke, quanto nos modelos Super Adventure. Há opções Adventure a partir de 990 cc em dois cilindros em V.
Todas as V2 japonesas e coreanas têm motores com refrigeração líquida, já que a refrigeração a ar no cilindro posterior (nos motores de virabrequim transversal) é crítica: o cilindro frontal desvia dele o fluxo de vento fresco.
Os motores em V a 90 graus são hoje uma especialidade italiana, embora, é claro, haja quem os adote mundo afora. A Moto Guzzi, marca que pertence ao Grupo Piaggio, os monta com o virabrequim longitudinal, ou seja, com os cilindros transversalmente ao chassi. Essa disposição da árvore de manivelas facilita enormemente a adoção de eixo- -cardã na transmissão final, o que a marca italiana naturalmente faz, além de BMW e Honda Gold Wing, entre tantas.
O L PERDIDO
Mas é a Ducati, do Grupo VW/Audi, a maior representante da configuração V-Twin a 90 graus em território brasileiro. Seus motores, com arrefecimento a líquido (exceto na versão de 800 cc a ar da Scrambler) e o exclusivo comando de válvulas desmodrômico, são explosivos, com desempenho arrepiante e esportividade à flor da pele. Um exemplo da paixão italiana por motores de alta performance e da excelência mecânica que alcançaram.
Não convém esquecer das coreanas Hyosung 250 e 650, que traziam seus V2 a 90º sob a finada marca brasileira Kasinsky. Tinham versões Comet, GT e Mirage, esta uma custom. Desapareceram. Bom, não dá para esgotar o assunto, e certamente há modelos V2 que nos escapam…
BOXEADOR ALEMÃO
Um dos flat twins mais famosos é sem dúvida o da alemã BMW, com seus dois cilindros contrapostos. Vendido pela empresa a terceiros desde 1921 –é um desenho de um século atrás, portanto–, foi montado por primeira vez em um chassi da marca em 1923, com 494 cc. Aquela BMW R32 já adotava eixo cardã na transmissão final, e tornou-se um clássico disputado pelos apreciadores da boa engenharia.
A marca da hélice não parou jamais desde então de se valer do flat twin ou boxer twin que hoje é sua maior identidade motriz. Também não cessou de evoluí-lo. Hoje, quase um século depois, a versão à venda no mercado brasileiro tem refrigeração mista, líquida no cabeçote, e 1250 cc. O desempenho é soberbo e o apelido boxer, “boxeador”, mostra a que veio, com sua incrível disposição de distribuir socos à esquerda e à direita, com muita energia e confiabilidade. Há uma corrente da engenharia que prega que esse também é um motor em V, só que a 180 graus… Muitos especialistas afirmam que quanto mais aberto for o ângulo de um V2 (o máximo é 180º, claro), mais torque aproveitável e menos vibrações ele vai apresentar. A julgar pelo incrível desempenho dos boxers twins alemães, eles podem estar certos.
INLINE TWINS
Aqui, vale dizer que a primeira motocicleta em produção seriada do mundo, a Hildebrand e Wolfmüller de 1894 aplicava um motor de dois cilindros horizontais paralelos. Os bicilíndricos em linha, inline twins, voltaram com tudo depois da assustadora crise econômica iniciada com a derrocada da gigante financeira norte-americana Lehman Brothers em 2008. Os mais sofisticados e mais caros tetracilíndricos cederam terreno aos motores dois-em-linha, que têm a virtude do equilíbrio, são mais econômicos e têm menor custo de produção. Embora não atinjam o nirvana das vibrações finas, do som empolgante e das performances endemoninhadas em rotações elevadas, empurram com vigor graças ao torque em médias e baixas rpm e muitos deles têm incrível disposição para subir de giro e gritar alto.
O maior nível de vibrações diante de um multicilíndrico é atenuado pela adoção quase universal de balanceadores acoplados à árvore de manivelas, para amenizá-las.
As vantagens dos bicilíndricos paralelos também incluem maior facilidade para adotar a mais simples e barata refrigeração a ar, pois a corrente de vento é igualmente distribuída entre as aletas dos dois cilindros e também dos coletores de escape, bem melhor que, por exemplo, nos V2 longitudinais. Em relação aos V-Twins, também são menores, mais leves e compactos. Isso permite motos com menor entre-eixos, para melhor maneabilidade e distribuição de massas. A montagem dos agregados, como os sistemas de alimentação e escape, filtro de ar e ignição é facilitada.
Em um motor de quatro tempos, a árvore de manivelas, girabrequim ou virabrequim, tem que dar duas voltas inteiras, ou percorrer 720 graus, para que se complete o ciclo dos quatro tempos (admissão, compressão, explosão e escape). A partir daí, há três concepções básicas de virabrequim que determinam o tempo de ignição dos twins paralelos: com o Ponto Morto Superior a 360, a 180 e a 270 graus. No motor com a árvore de manivelas a 360 graus, os dois pistões sobem e descem simultaneamente, como se fossem um monocilindro, mas com tempos-motor diferentes, é claro: quando um está em compressão, o outro está em exaustão e assim por diante. Esse tipo de motor tem alto torque em baixas rpm e vibrações mais intensas e ásperas.
Já com o virabrequim a 180 graus, um pistão sobe enquanto o outro desce. O intervalo é de 540 graus entre uma explosão e a próxima, em um mesmo cilindro. Há então maior disposição para as altas rotações e vibrações mais finas. As Kawasaki também adotam essa arquitetura.
Na ordem de ignição a 270 graus, modelo dominante atualmente, um mancal está a um quarto de volta do outro, e um mesmo cilindro volta a explodir depois de o pino do virabrequim percorrer 450 graus, o que proporciona uma entrega de torque bastante plana ao longo da faixa de giros do motor. Esse é o padrão de ignição em um V2 a 90 graus. Os pistões nunca ficam parados simultaneamente, reduzindo o impacto entre as bielas e o mancal do virabrequim em uma rotação completa. A Yamaha é pioneira e tem avançado no desenvolvimento dessa modalidade de inline twin.
A KTM adota em seu poderoso motor de 790 cc a curiosa configuração dos mancais das bielas a 75 graus, ou seja, com intervalos de explosão a cada 435 graus...
CLÁSSICAS ALINHADAS
As clássicas adotam bicilíndricos paralelos quase como regra geral. A exceção é a Kawasaki Z900 RS, quatro cilindros.
A Triumph, por exemplo, divide entre sete modelos clássicos dois diferentes motores bicilíndricos em linha. O mais potente (80 cv) tem 1.200 cc, refrigeração líquida e um só eixo-comando para quatro válvulas por cilindro, com intervalo de ignição a 270 graus, tendência dominante por proporcionar um torque mais aguerrido em baixas e médias rotações. O outro, de 900 cc com a mesma arquitetura, tem 65 cv. Eu já tive a experiência de guiar ambos e, acredite, a entrega de torque é fluente e a pilotagem, empolgante.
A indo-britânica Royal Enfield também adota em seus modelos clássicos Interceptor e Continental GT os motores dois-em-linha de 650cc. São dois cilindros paralelos refrigerados a ar e óleo (grande radiador de óleo na frente). Com intervalo de ignição a 270 graus, como os crossplane da família MT da Yamaha, entre outros, têm um torque fascinante. O máximo de 5,3 kgf.m surge a 5.250 giros, mas a baixos 2.500 rpm, 80% disso já estão chegando à roda.
DOIS-EM-LINHA ORIENTAIS
Os twins não são prerrogativa dos modelos retrô: eles têm sido adotados em muitas motos de design moderno, inclusive esportivas de desempenho agressivo. É mais ou menos consenso atualmente que motocicletas entre 400 cc e 650 cc utilizem motores duplos, embora, é claro, o mundo esteja repleto de exceções a toda afirmação generalista.
No Brasil, se destacam as CB 500, em versões F naked e crossover X, também de motores com ordem de ignição a 270 graus e refrigeração líquida. Com 50,4 cv e torque de 4,55 kgf.m, têm um compromisso muito adequado entre desempenho em alta e torque em médias, além de economia de combustível e muita robustez.
A Honda tem ainda a NC 750X, crossover com um bicilíndrico de origem automotiva: metade de um 1,5 litro de quatro cilindros da marca. Também a 270º, esse 750 tem predileção crônica pelos baixos e médios regimes de rotação, e pouca vocação para altos giros. Em compensação, é extremamente confiável e econômico. Esse motor é adotado no maxiscooter X-ADV e ali, com transmissão automatizada DCT de sete marchas, encontra sua melhor faceta.
A Yamaha valoriza o virabrequim a 270 graus –que chama de Crossplane– em dois modelos de sua família Master of Torque, a MT-03 e a MT-07. A pequena esportiva R3, de grande sucesso nas pistas, também vai de motor duplo, pois se vale da mesma base mecânica da MT-03. É um twin de 321 cc, 42 cv e 3 “quilos” de torque, refrigerado a líquido.
A Yamaha MT-07 é um primor de alegria na pilotagem e tem desempenho também surpreendente. Seu inline twin de 689 cc (refrigeração líquida) é muito agressivo, e faz jus ao epíteto de mestre do torque: são 6,9 kgf.m e 74,8 cv que transformam a MT-07 em uma selvagem de 183 kg.
A Kawasaki também lança mão de twins em sua linha Z, Versys e Ninja de 300, 400 e 650 cc. Assim, Z400 e Ninja 400 têm motor arrefecido a água de 399 cc, 48 cv a 10.000 rpm e torque de 3,9 kgf.m a 8.000 rpm. Como se vê, é um propulsor que prefere as altas rotações para entregar todo seu potencial de diversão. A versão Versys-X mantém o dois-em-linha da geração anterior, de 296 cc e 40 cv a 11.500 rpm. Os números não mentem e ele é ainda mais propenso aos altos regimes de rotação.
Por sua vez, os dois cilindros de 650 cc que equipam a Z650, a Versys 650 e a Ninja 650 são mais equilibrados em termos de entrega de torque ao longo do percurso do ponteiro do contagiros. São 68 cv a 8.000 rpm e excelente torque de 6,7 “quilos” a 6.500 rpm. Uma delícia de motor.
GERMÂNICOS NA LINHA
A alemã BMW também mantém em linha uma família de motocicletas inline twin. São as F, cujos representantes em território nacional são as big trail F 850 GS e F 750 GS. A versão naked, de passeio, não está mais à venda por aqui.
As F são equipadas com um dois-em-linha de 853 cc, inclusive a versão que adota a denominação 750, que portanto não se refere à cilindrada do motor. Esse motor tem potências desiguais entre essas motos: libera 80 cv na F 850 e 77 cv na F 750, por diferentes ajustes da central eletrônica que monitora a entrega. O torque também é mais forte na 850: são 9,2 kgf.m contra 8,46 kgf.m na 750.
Esse twin é um projeto conjunto entre a BMW e a austríaca Rotax, que o fabrica para a montadora alemã. Com refrigeração líquida, quatro válvulas por cilindro, também adota a sequência de ignição 270/450 graus, a mais forte tendência entre os dois-em-linha.
Em relação aos anteriores BMW inline twin, os atuais (lançados em 2016 no Brasil) são bem mais silenciosos, macios e têm menos vibrações, além de promoverem uma entrega de torque mais linear ao longo da faixa do conta-giros, com grande elasticidade. Os pistões, que nas primeiras unidades da série F800 subiam e desciam simultaneamente, agora se revezam no movimento, o que diminui impacto e vibração no virabrequim e aumenta o conforto ao pilotar. Mesmo assim, o ruído é intenso e um tanto áspero, embora muito longe de ser desagradável.
Os motores duplos, em qualquer das muitas configurações, têm aumentado sua participação no mercado mundial. Com compromisso equilibrado entre custo, performance e economia, viabilizam projetos destinados a quem não prioriza apenas a esportividade pura, mas simplicidade mecânica, menor consumo e confiabilidade.